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Plágio 



Por.: Edielson B. do Carmo 
Itaberaba - Bahia

            Quando me lembro da profundidade de suas palavras fico todo eriçado. Não me recordo de ter lido ou ouvido tais arranjos com perfeita leveza e maestria. Cada palavra descrevia aquilo que eu também sentia ou queria sentir, quando em quando parava e refletia querendo não me envolver, não me deixar levar por sentimentos inoportunos. Já seria tarde demais, uma vez que sua voz já havia penetrado por meus ouvidos fazendo um barulhinho gostoso de lembrar. Saboreei cada palavra como sendo únicas, verdades que nunca ouvira antes.

            Por dias refleti estas palavras até abrir fatidicamente um livro revelador, “O primo Basílio”. Na pag. que fora marcada anteriormente por um leitor atento, pude constatar com certo desterro o plágio infame que me roubara o coração. Se antes tivesse ao menos lido nas próprias letras de Eça, não teria ficado macambúzio, desconcertado, vilipendiado. Encararia sua intenção como das mais sinceras possíveis. Ela inocente, mas de coração arrebatado, concordou em pegar emprestado as palavras de uma personagem de Eça. Queria agradar, fazer-me feliz, fazer-me sentir bem aos seus olhos.

            Não falei pra ela o que havia descoberto, mas a partir dali preocupei-me em saber que livros ela andava lendo. E a vasculhar cada livro que encontrasse nas livrarias e bibliotecas da cidade comparando suas cartas de amor...

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Terra, suor e sangue

Por:. Antonio Marcos Ribeiro
Marcionílio Souza – BA

É cedo, muito cedo o galo tece um canto indicando que está na hora de levantar, pois a luta continua. A lida é avançar sem esmorecer, um dia de cada vez, um passo e outro passo. O grilo faz uma serenata galante, a coruja é um vigia incansável de uma noite estrelada cochilando na alvorada. A calça a mais surrada da guerra, a botina com milhares de quilômetros andados. Abre a janela pega a escova um tanto gasta, um copo d’água, pasta dental. Separa as ferramentas: facão, enxada, foice e espingarda para o caso de encontrar uma caça no meio do caminho, nunca se sabe. Para o almoço e intervalos farofa de tripas bem assadas, acompanhamento uma cabaça com água.

Chama o menino que se agarra firmemente no cobertor curtindo aquele sono gostoso de quem dormiu o sono do trabalhador mirim. Mas não sabe que para se ter um sono desses é preciso levantar exatamente nessas horas. Mais uma vez nesse abusado horário. Meninos não acordam sozinhos, por isso a ajuda dos pais. Senão acabam morando em suas camas. Acorda lava o rosto, toma um café fervendo e meio amargo. No fogão a lenha, uma última brasa fica entre a luz e as trevas. Esperando ser alimentado com mais lenha e mais fogo é isso que acontece. Esquenta o rosto de uma jovem que prepara uma iguaria, cuscuz com leite. Não se sabe ao certo se é o amor das mãos de quem prepara ou a fome que dá o sabor especial. Seja como for tudo aquilo ali, essa rotina tem o sabor do melhor lugar do mundo apesar de.

A vida é sofrida, suada, batalhada, mas o desconforto maior era ter de trabalhar em terras que não são suas. Em ter de dividir injustamente a produção. Se forem dez sacos de feijão três para o proprietário, se for dez leitões três para o dono das terras, se dois bezerros um pra cada. Isso persiste por longos anos e a sensação é que já está tudo quitado. Aquele ano seria diferente. Desde a fundação do sindicato abriram-se os olhos, fez a união, fez lutar por algo comum. De comum acordo ninguém paga mais pelo uso das terras, aquela situação não cabe nos tempos de hoje. Esse novo ânimo vem com intimidação, repressão, retaliação. Temos força para olhar por cima dos impropérios e continuar. A marca da botina no chão era firme junto com a cabeça erguida. O processo de desapropriação e assentamento estava em andamento. O doutor advogado explicou tudo isso na reunião, seria coisa rápida. Isso ajunta os companheiros. Por isso aquela madrugada tinha tudo tinha um sabor diferente, um roçado novo, um novo começo.

Dormiu o sono de quem fica planejando mil sonhos. No turbilhão de pensamentos o certo era a construção de uma escola, uma igreja e a sede do sindicato. Fé, educação e luta elementos necessários pra quem ousa dar um passo adiante. Ao mesmo tempo aquela busca de querer saber quem foi que cercou o primeiro pedaço de terra dizendo ser seu. O mundo pertence a Deus e Ele deu aos seus filhos. ‘Derrubadas sejam todas as cercas’. O mundo seria melhor sem elas. Outros pensamentos desfazem a indignação. Viria em breve a colheita dos roçados e não pagaria nada por aquilo que sua consciência dizia ser de direito seu. Um abraço aninha o corpo pensante que divaga no amanhã.

Beijo de despedida e a promessa que volta na tardinha. O sinal da cruz é uma proteção a mais. O menino toma a benção da mãe e lá se vai os dois homens de sua vida. Sumindo no caminho escuro dos olhos acostumados por aquela estrada conhecida. No lugar determinado encontra com outros que em meio as usuais saudações prosseguem numa marcha firme para a lida. Chegando procura logo um lugar de boa sombra, o dia promete que será de muito quente. Começar a trabalhar. Com o instinto de liderança que lhe era inato vai jogando palavras da importância daquele momento. Perguntam o que eles vêem ali, todos unânimes dizem que só o mato crescido. Ele não, apontando ao ermo vê a igreja, a escola e a sede do sindicato.

O menino se imagina estudando, não vê a hora de ter um caderno e lápis. Ler e escrever, conhecer o mundo num quadro de giz. Ser advogado porque achava bonito como o doutor falava mesmo sem entender bem algumas palavras. Nunca é tarde para se fazer o que se é importante. Aprendeu que ninguém nasce sabendo e se os outros sabem por que não ele? Agora sonha com o pai e vê a escola bem ali na sua frente.

O tempo passa e o calor vai aumentando a água mata a primeira sede, a segunda, terceira e outras mais. Cada enxadada é misturada com algumas palavras animadas. Não sabem que perto dali na espreita outro grupo com objetivos bem diferentes. Serpentes ávidas para derramar o veneno na presa que desconhecem do perigo eminente. Sorrateiramente se aproxima, com passos matreiros. A missão era derrubar um homem só e nada mais. Exatamente aquele que mais sonha, que mais aponta, que mais conversa. Armas rezadas carregadas de morte.

O suor derrama caudalosamente em ambos os grupos. Um pensa na vida outro na morte. Um sonha, o outro em desfazer o sonho. Um pensa em construir, o outro em deixar tudo como está, pensa o patrão, pensa o latifundiário. Acredita que assim é bem melhor. Só em uma coisa os grupos concordam: terminar logo o serviço. Ambos concentrados em seu dever. Ambos castigados pelo sol e conscientes de que estão fazendo a coisa certa. Naquela hora, um disparo, um tiro e logo vários num inferno de pólvora. Cai um homem no chão, outros fogem desorientados mato adentro. O menino em direção ao pai é ferido. Uma confusão só. Com o homem no chão o grupo da morte retorna com o pensamento de que ninguém vai querer invadir aquelas terras novamente.

Inconsciente aquele que apontava para a igreja, a escola e o sindicato com olhos arregalados e o sol em cima. Sangue jorra e mistura com suor em profusão. Lágrimas também de um menino desolado, desconsolado que não aceita, que tenta afugentar a morte que está alojada no corpo do lavrador. Os companheiros retornam com água, medo e receiosos de que os pistoleiros estejam ainda por ali. Distante dali um outro amigo sente um cala frio na espinha, uma angústia no peito, mas não entende de onde isso vem. Ignora e toca a vida adiante.

A notícia se espalha tão rápido como um tiro. Um companheiro tomba em terras de litígio. A mulher em casa sente uma pontada no coração, uma leve tristeza que se confirma ao abrir a porta ao mensageiro com o anuncio fúnebre. Ainda com as vestes de sono, não acredita, grita e chora, desmaia, acorda, brada até não ter mais forças. O menino chega com o pranto calado. A espera por mais notícias é eterna. Corpo levado para um centro médico longe o que resta é aguardar. Até que ao fim da tarde bem na hora, naquela mesma hora em que ele chegava cansado esperando o aconchego do lar, chega o caixão.

Outro grito, choro que estremece, seria assim na noite mais longa de todas para todo mundo. A face do sonhador estava sereno dormindo o sono de quem continuava sonhando. Acendem uma fogueira ali no terreiro e muita gente ao redor conversando, refletindo, se perguntando. Perguntas do tamanho do mundo, dor semelhante, um desconsolo só. Amanhece e a realidade cheira flores de funeral. Como seria bom se tudo não passasse apenas de um pesadelo que a gente esquece no decorrer do dia.

O advogado estava lá, os companheiros também. Parecia outra reunião sindical. Era a última para ele. O caixão deixa a salinha com grande dificuldade a esposa não quer deixar ir, não dessa maneira para nunca mais voltar. Como seria as noites? E as conversas, os causos? As brincadeiras? Quem estaria disposto a pagar cada saudade? É tanto ‘e se’. Mas não adianta nada agarra forte uma amiga e segue com o populacho.

A fúnebre procissão segue para necrópoles. Um silêncio ensurdecedor até o limiar da ova, palavras são dirigidas com emoção, lágrimas e aplausos. A primeira pá de terra, as outras com gotas de suor até cobrir tudo. Saem um a um ficando por último a mulher, o menino, os companheiros do fatídico dia. Mais lágrimas que molha a terra quente. Mais algumas lembranças misturadas com saudades e uma pontada de dor.

Naquele dia todos retornam para suas casas pensando nos últimos acontecimentos revigorados com um novo espírito de luta, parecia uma derrota, jogados ao chão se levantam mais fortes. Tudo aquilo teria outro sentido e as conquistas seriam em memória do mártir. O tempo iria fecundar as sementes que por ali foram plantadas. Esse suor derramado custou o sangue de quem sonhou e o sonho capinou o mato. A escola fica logo ali e recebe seus alunos. A igreja abre as portas para receber a oração do coração saudoso.

A sede do sindicato recebe os companheiros que cotidianamente recordam que a luta continua. Os três lugares é uma flâmula que ensina que devemos aprender as lições que a vida propõe ensinar. O assentamento recebe o seu nome para que ninguém se esqueça que terra, suor e sangue são os ingredientes para alimentar a luta.


Obs. Marcionílio Souza nos anos 80 foi palco das lutas trabalhistas em prol da terra. Zacarias era um representante do movimento rural quando em 13 de agosto, enquanto fazia um roçado em terras de litígio foi assassinado por pistoleiros. Suas últimas palavras naquele dia foram “Aqui vamos construir uma escola, uma igreja e a sede do sindicato, esta terra é nossa, é dos trabalhadores entendeu companheiros? É nossa!”. No seu sepultamento afluiu grande multidão. Até hoje o caso não foi resolvido pela justiça como muitos outros casos semelhantes em todo Brasil. Mas a memória desse fato permanece no imaginário popular e serve de vinculo nas lutas e reivindicações atuais. Existe um assentamento por nome de Zacarias, e sua memória é invocada como forma de encorajamento, esperança e luta.

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POEMAS DE JOSLEY MATTOS



TU

Corpo, alcova e carne
além da língua o suor
alento pelo estreito de teus poros
acolhe sereno gozo
afoito ar na asfixia do silêncio...
Chamar-te-arei Lirio
Cultivar-te-arei mulher
abrigo simples das caricias
dúctil, íntima
Segredosa flor das retinas
Véspera das horas amiúde...


PECAMINOSA ANGELICAL

Açucena em descanso
Colho-te maviosa no olhar,
pétala corpo,
brisa cálida,
desejo em flor...
inisinua-te abrigo,
inoscência em chamas, desatando palavras,
acariciando o ardor,
alimenta-me oasis roseo pudor,
rigidas luzes,
taça oculta,
líbido e cristal...
na breve afoita espera,
vislumbro-te,
pintura trigueira na obscena moldura deificada de ti mulher.
Sem eira nem fim...
O nós enfim,
não apenas existindo...
não apenas.



OPÚSCULO

Desapego étimo,
gírias, ciências e eugenia,
eufemismo e éter, deitado Orfeu
em berço estulto.
O ser humano solícito,
seqüestrado num estupro sôfrego
da mídia.

Um ser que não é...
de vida interna mortalôbrega,humanitária...
e externo luzidio, lúrido, hipócrita sentado à mesa famélico banqueteia-se da hóstia infecta do egoísmo e empanturra-se de preces para aliviar seus pecados, enquanto compunge,digere o perdão hostil, insípido que cerva e dura a alma...
e assim salvo, afoga-se no sal da saliva alheia a seu sustento
devorando a fé em comunhão solitária.

Mais poemas de Josley Mattos em:
POEMAS DE AMOR

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SAUDADES EM POESIAS

Por.: Claudinei Romão
Itaberaba - Bahia

Poesias de Várias Saudades não é somente um livro de poesias. Engana-se quem pensar que estará lendo mais um Romântico a delirá por uma louca paixão que partiu. Este livro revela paixões sim, porém no sentido etimológico mais voraz da palavra. Este livro revela em sua concretude uma parcela da alma do autor, porém não será nenhuma estranheza se vocês caros leitores se identificarem com essas Poesias de Várias Saudades. Eis alguns trechos.


PRONOMES DE SAUDADES

Penso em ti
Penso em mim
Penso em nós

Nós sem ti
É nada
Mim sem ti
É solidão

Ti sem mim
Não sei

Sei que ti
Sem mim vive

Sei que mim
Sem ti não vive

Ti volta pra mim pra ser nós


O CONHECER DAS TARDES II


Estás trancado numa
Jaula repleta de nada
Todos falam, mas ninguém
[Diz nada.

Não adianta olhar pro céu,
A luta não é lá

Não adianta emigrar
A luta é em ti

A utopia do viver
Está na essência do amar
A realidade do viver
Está na busca do prazer

Para adquirir o livro acesse:
PROTEXTO

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A TRAVESSIA


Por.: Marcos Ribeiro
Marcionílio Souza - Bahia

Um poeta é como alguém andando em uma estrada. Quando o sol nasce ele já parte. Apenas ele e uma pequena bagagem. Seguindo um caminho cheio de paixão por algo que ama. Seu olhar sempre posto no horizonte com o reflexo solar em seu rosto suado. Quando avista placas não segue nenhuma delas. Ele não precisa de carona nem de atalhos para onde quer chegar, só quer chegar. Apenas anda, querendo estar longe de todos e dele mesmo. Trazendo consigo algumas lembranças.

O mais difícil não é o inicio e nem o final é a jornada que ás vezes é dura. É a travessia que traz consigo seus desafios, testando ao máximo a resistência de um ser humano. São Decepções e lutas. Pedras e espinhos que ferindo os pés, torna os passos lentos. Em noites ele vê estrelas, noutras nem presta atenção e tem vez que o céu fica escuro sem um fio de luz. Em alguns momentos ora chora, ora ri da própria sorte. Nessa andança conhece cidades, lugares, pessoas e amores. Quando um ser humano encontra um amor esse amor marca toda sua vida. Ele ganha uma linda fotografia para lembrar de quem tanto amou. Conhece a solidão, que por tantas vezes lhe trancou no calabouço do mundo, para comer pão com lágrimas e entender o significado do silêncio. Ele conhece muito bem o jogo da vida, a ira de homens e o devorador de sonhos.

Sabe que tantos antes dele por ali já passaram e que muitos se curvaram quase desanimando, mas, na fraqueza tiraram forças para prosseguir. Muitos virão depois dele, por isso não desanima facilmente. Vê marcas de sangue, cinzas e papéis como folhas de outono. O vento ajuda a espalhar as folhas. Olhando para trás vê que suas pegadas vão marcando o caminho. O cansaço é o sinal de que já andou bastante. Vê que naquele trecho já passaram famosos e conhecidos, pessoas que o mundo aplaudiu. Enxerga mais pegadas de anônimos como ele, que o mundo jamais reconheceu, conheceu, sequer leu uma página de seus escritos. A própria estrada é testemunha de que anônimos também deixam marcas. Somente a eternidade os reconhecerá. Quanto mais anda mais pesada fica a bagagem e falta muito pra chegar ao final.
Nosso viajante também é pintor. Não usa telas e nem tintas. Seus quadros são de palavras. Usa papel, pena e uma centelha de inspiração que não se explica é preciso viver a poesia.

Seguindo a estrada avista uma montanha. Olha para o céu acima e vê as nuvens. Olha o horizonte e vê as luzes da cidade e o conflito dos homens. Há pessoas no vale e na base. Sabe que do alto a visão sempre é melhor, por isso prefere com grande esforço chegar ao topo. Uma águia parece desafiá-lo a subir. Ele também é capaz de chegar às maiores alturas. No topo enxerga todo percurso da estrada, vê o inicio e o final numa perspectiva melhor. Parecia que o céu estava mais perto da terra. Ele colhe uma flor e coloca junto com a fotografia. Seria uma lembrança, um presente. Com a respiração ofegante pelo ar rarefeito segue seu caminho contra o vento que vinha do vale.


Aquele vento trouxe consigo uma fina chuva. O peregrino se desvia da estrada se abrigando numa árvore. A chuva caia molhando o chão refrescando a terra seca. Ao longe o agricultor em sua sincera prece agradecia pela dádiva do céu. Pequenas gotas molhavam um ninho e regava a relva. Era bom ouvir o som da chuva caindo. Ali embaixo da árvore ele ficou vendo a fotografia que havia ganhado. O vento e a chuva haviam trazido boas lembranças. As águas levavam os problemas ocasionais. Aquilo foi uma terapia, um refrigério para a alma. De repente o sol rasga as nuvens e um pássaro anuncia um novo amanhecer o arco-íris diz que a vida continua.

Ao longe vê uma moeda que a chuva desenterrou, tinha um certo brilho que chamava atenção. Ele pega e guarda aquela moeda junto com a fotografia e a flor. Coloca numa caixa de madeira de cedro com detalhes dourados. O interior era forrado com veludo. Tudo preparado cuidadosamente para guardar o que ele considerava de mais precioso: a fotografia, a flor e a moeda. Ele guardaria aquilo por toda sua vida.

Seguindo seu caminho ele nunca desanimou. Algumas vezes foi tentado a parar, mas sempre encontrava motivos para prosseguir. Fez muitos quadros de palavras, escalou outras montanhas. Seus pés empoeirados já estavam calejados de tanto andar. A caixinha era como um bálsamo que aliviava suas dores. Porque o passado não morre, nem passa fica sempre presente dentro de nós. As pessoas o saudavam e se oferecia um sorriso, mas ninguém sabia que por detrás de um sorriso escondia um mistério. Numa vida se esconde muita coisa, segredos do coração que é como um poço sem fim. Podemos ser até um livro aberto, mas ninguém consegue entender algumas letras.

Chegando ao fim da jornada no entardecer da vida, no pôr-do-sol da existência, pega a caixinha dourada com os presentes. Os dias se tornaram em anos e esses presentes eram uma recordação das boas coisas que se conquistou na travessia. Abriu a pequena caixa, não se conteve. A fotografia escureceu, a moeda perdera o brilho e a flor havia se despedaçado, soltando todas as pétalas. Naquela hora começou a chover. Buscou um abrigo numa árvore. Suas lágrimas se misturavam com as gotas de chuva. Ficou escutando o som que faz o vento e a música da folhas.

Fechou os olhos lembrando-se de cada momento. Marcas no caminho, alegrias e tristezas. Famosos e anônimos. A montanha. Da janela de uma casa dava pra ver a silhueta de um homem debruçado escrevendo. Sua última palavra é paixão. Ele deixa cair a caixinha. O vento leva a fotografia e as pétalas se perdem. A moeda some na lama. Sua bagagem que estava encostada numa pedra se enche de água espalhando seus pertences. Um raio iluminou toda campina. A pena caiu de sua mão.
Morre um poeta. Apagou-se uma luz. Se fôssemos resumir todos os feitos, todos os esforços, todas as feridas. Em apenas uma palavra toda inspiração, sacrifícios e heroísmos, apenas uma e seria paixão. Que é qual uma fonte, ou fogo que incendeia uma existência. Durante toda sua vida ele fora um homem extremamente apaixonado. Existia algo que o movia e o fazia seguir, a paixão pela poesia.



FRAGMENTOS DE MINHA INFÂNCIA

 Por.: Marcos Ribeiro
Marcionílio Souza - Bahia

Relato de uma experiência

Quando recordo minha infância parece que sou transportado para um mundo mágico em outro tempo e outro lugar. Tenho apenas algumas lembranças, como recortes de situações que ficaram marcados pelo resto de minha vida. São como fotos bem emoldurados que ao passar pelo corredor do tempo ainda estão bem visíveis.

Quando fecho os olhos meus sentidos são arrebatados como se eu revivesse todos aqueles momentos. Posso sentir meus pés na lama, posso degustar o mingau de maizena, sentir o cheiro de terra molhada, ora da janela lá de casa, ora tomando banho de chuva... Eu posso viajar...

Não tenho idéia de que idade tinha, mas a cidade era Brumado, no sudoeste baiano, o bairro de periferia São Félix, exatamente na Rua Bocaiúva, o número esqueci. Poderia ser em qualquer rua comum, exceto por algumas peculiaridades: ficava numa ladeira que no final dava num barranco e mais adiante o poluído rio do Antônio. Um detalhe a rua era calçada. Meu pai era ferroviário, hoje aposentado e minha mãe dona de casa, eu e meu irmão mais novo um ano. Éramos quatro numa pequena casa. Era simples, bem simples mesmo. O quintal tinha um cerca de madeira que dava pra ver a vizinha, dona Petronília, uma velha. Eu ficava intrigado com uma coisa. Ela mijava em pé! E sem tirar a saia! Pelo que sabia até o momento mulheres mijavam agachadas e homens em pé. Como ela conseguia aquilo era um mistério para mim.

No final da rua, a última casa da direita, do mesmo lado da minha, vivia dona Berenice. Ela tinha um jabuti que morava debaixo de sua mobília. Era interessante ver o andar metreiro e sua casa nas costa. Minha vizinhança eu conhecia bem. Tinha a dona Zuínha, uma negra gorda que cozinhava muito bem. Eram os comentários, pois nunca comi nada feito por ela, casada com Mané Branbrão, alcoólatra inveterado. Naquela época se dizia cachaceiro. Eu só via bêbado cambaleando entre uma parede e outra.

Dona Bel era a melhor amiga de minha mãe, seu marido Sr. Arlindo era barbeiro. Eu costumava ficar na casa dela, principalmente na hora do almoço, porque pra mim eram exóticos aqueles pratos: pirão, tripa de boi frita, buchada e outras coisas. Ela tinha um tanto assim de filhos, que eu nem sabia o nome de alguns. Os mais chegados eram Moura e Jailda. Ela gostava muito de animais. Tinha um papagaio e dois cachorros, inclusive um deles o Toquin já me mordeu. Uma vez eu o vi bocando moscas que sentavam em suas feridas. Eu na melhor das intenções matei uma mosca e ofereci ao faminto cãozinho, só que ele me abocanhou com tudo. Fiquei com a mão enfaixada por dias.

Lá na rua tinha aquelas figuras excêntricas, que o pessoal vulgarmente chamava de ‘doidos’. Ficavam perambulando pela rua. O ‘Zé Doido’, por exemplo, sempre ficava segurando uma lata de extrato de tomate e com a outra segurando a calça jeans surrrada que teimava em deixá-lo. Vivia pedindo na vizinhança. Nunca ouvi falar outra coisa a não ser café. Era sua bebida e favorita, alguns davam pão para complementar. Ouvir dizer que perdera o juízo por estudar demais. Será que foi isso mesmo? Tinha dias em que ele ficava mais agitado, como se dizia, mais ‘atacado’, mais louco do que o normal. Saia correndo e gritando e o contrário também. Nessas horas quem era doido de sair na rua?

Havia outro chamado ‘Pirão de Rabada’, tenho a impressão de que não era louco, mas era uma figura caricata. Esse apelido derivava do simples fato de que, ele se borrava todo durante a noite e logo bem cedinho, pela manhã ia ao rio lavar sua cueca recheada. Saindo dos loucos, a Jailda que citei logo atrás, organizava as brincadeiras de rua com as amigas, era uma espécie de líder. Naquela época tínhamos total liberdade e segurança o qual não se vê por hoje. Ela juntava a molecada para o ‘boca de forno’, as cantigas e brincadeiras de roda, ainda ouço aquelas música em alto e bom som:

“É de tango, tango, maninha,
É de carrapicho,
Vou jogar Marcos,
Na lata do lixo.”

Também gostava de ouvir as histórias e lendas que a Dona Bel contava pra minha mãe. Eu pegava carona e ia ouvindo. Diziam que era conversa de adultos, mas a gente sempre encontrava um jeito de se aproximar e apreciar aqueles contos da sabedoria popular. Lembro de uma em que um caçador se perdera no mato. Deu de cara com a caipora, uma criatura do mato de aspecto terrível. Um dos seus truques é fazer as pessoas se perderem. Disse ao caçador que só mostraria a saída se ele lhe desse a mão como presente. Ele, esperto todo, cortou a mão de um macaco que havia caçado e ofertou a dona do mato. Assim ele conseguiu sair da floresta. E quem quiser que conte outras e sempre tinha outras.

Os dias vão se passando, entre histórias e brincadeiras minha mãe um dia me chama e diz que tinha chegado a hora de ir para Escola. Eu não sabia nada do que essa palavra significava, mas logo concordei, pois ganhei uma roupa nova e uma lancheira. E lá fomos eu e meu irmão para o primeiro dia de aula. Na verdade estávamos indo para uma banca, ainda não tínhamos idade suficiente para freqüentar uma escola. Não me lembro outra vez em que chorei tanto. Acho que depois do primeiro dia na escola deve ter sido o dia em que fui tomar vacina. Até hoje não tenho intimidade com agulhas.  Naquele dia na escola, chorei pra ficar com minha mãe, pois tudo era diferente e novo pra mim. Queria ir embora o mais depressa possível, as pessoas, o ambiente, tudo me era estranho... Mas logo me acostumei. Não me lembro o nome da professora, ou melhor, da tia, mas me lembro de ter ficado de castigo ajoelhado no milho ou de braços abertos em frente à parede. Eu e meu irmão revezávamos no castigo, ou era eu ou ele. Eu disse que estava acostumado com tudo ali, não foi bem assim. Deixa eu te contar.

O dia que mais me marcou nesse período foi a vez em que tive vontade de ir ao sanitário, mas num misto de vergonha e medo ( tinha um cachorro enorme no quintal que latia sem parar!) fiz tudo que tinha direito ali mesmo onde eu estava sentado, na bermuda fazendo a tarefinha. Todos sentiram um estranho, mas conhecido odor. Foi quando a Tia detectou de onde vinha o fedor e imediatamente parou o que estava fazendo e foi até o quintal limpar-me. A cena final ficou assim: fim de tarde, minha mãe segurando minha mão e eu pelado da cintura pra baixo carregando nas pontinhas dos dedos a bermuda lavada e a lancheira do lado. Dava uma bela foto.

Quando completei mais idade me veio outras novidades. Primeiro foi mudar de endereço. Saímos da Bocaiúva e fomos para a Rodrigues de Castro Leite, 77 (agora me lembro o número) no mesmo bairro. A casa era grande e espaçosa. Havia um grande terreno atrás dos muros que chamávamos de manguinha. Lá eu e alguns amigos fazíamos experiências com calangos, do tipo, aplicar injeções com as seringas que achávamos no lixo. O que tinha na seringa? Poções, que eram misturas de remédios encontrados também no lixo. Ora machucados com água, ora fervidos numa panela velha. O tempo na manguinha se passava assim: um dia era temporada de caça ao calango outro dia era pra caça aos passarinhos e tinha outro que era dedicado aos insetos.

Até aquele momento éramos cinco, já tinha uma irmãzinha. E depois chegariam mais dois irmãos. Ficaríamos oito depois de um tempo. Em Marcionílio Souza, que falarei mais adiante nasceria o caçula. A Dona Bel também se mudou logo depois, pra ficar mais perto da gente, numa rua mais acima. A outra novidade foi a de ter de freqüentar uma escola de verdade. Era a turma de alfabetização, num casarão improvisado para dar aulas. Meu irmão ficou noutra turma, daí nunca mais nos encontramos numa mesma sala. A tia Lúcia nos apresentou a cartilha Casinha Feliz e as musiquinhas pra cada letra das vogais:

“Sou redondo como uma bola,
Tenho gancho de espetar,
Quem souber meu nome,
Abra a boca e diga ‘A’!”

“Eu sou uma bailarina,
De serepeté,
Quem souber meu nome,
Abra a boca e diga ‘É’!”

E eu abria o bocão! Só me lembro às músicas da letra ‘A’ e da letra ‘E’. A tia Lúcia gritava muito e sua voz se parecia de homem, era um tanto grave, rouca e estrondosa. Passei para a primeira série, alivio aos meus ouvidos. Eu nem sabia o que significava isso e suas implicações, mas tudo bem. Lá estava eu numa creche que deixou de ser creche para dá lugar a uma escola. A creche Pequeno Polegar virou Escola Idalina Azevedo Lôbo. Quem terá sido essa mulher? Até hoje não sei. A minha nova tia se chamava Marliete, cabelos loiros curtos, voz doce, óculos, um amor de pessoa. Ficamos naquela creche, quer dizer, escola por pouco tempo. A creche voltaria a ser creche e a escola fora construída lá no meio do mato. Da creche eu me lembro que, um dia descobrindo os maravilhosos segredos do fogo, chamusquei parte de meus cabelos com uma caixa de fósforos. Tive de colocar o classificador na cabeça pra ninguém notar, era uma vergonha passar pela rua! Até que os cabelos cresceram!.

Sim! A escola no meio do mato. Houve uma época que íamos tremendo de medo. Naquele ano circulou certa lenda urbana (para manter meninos e meninas em suas casas) que falava de homens num carro preto que seqüestravam crianças para roubar órgãos. Ir para escola se tornou uma aventura, pois o caminho era deserto e tínhamos de dar passos bem apressados. Outro dia um engraçadinho disse que tinha gente no mato escondido nos seguindo. Corremos feitos loucos foi um salvem-se quem puder, com gritarias e até choros para os mais lentos. Coitado de quem ficava para trás!

Outro boato circulou falando que na lagoa, que ficava no caminho da escola, havia um jacaré que saía pra atacar (eu entendia comer) criançinhas. Passar pela lagoa era sinônimo de atletismo. Foram tantas corridas que logo me tornei um exímio corredor de longas e curtas distâncias. E nessas brincadeiras que exigia tais habilidades eu me saia bem, sendo um dos primeiros a ser escolhido.

Voltando a falar da professora Marliete, lembro dos livros que ela nos emprestava. Eu nem sabia ler direito, ficava juntando letras para soletrar palavras e decifrando frases. Mas aquela atitude me fez gostar de leitura mesmo sem saber ler. Um dia passeando pelo centro pedi minha mãe para comprar um gibi dos Superamigos que tinha visto na banca. Com aquela revista em quadrinhos eu começava minha coleção. Todo mês tinha de trocar de caixa para guardá-las com o máximo cuidado. Quando completei quinze anos eu já tinha mais de quinhentas revistas, no qual até hoje guardo alguns exemplares.

Passei para a segunda série e a professora da vez era a Luziete, de lá não me recordo muita coisa, só a vez que meu pai mandou o Sr. Arlindo passar a máquina em minha cabeça deixando quase raspada. E doía na hora do corte porque sua máquina era manual, diferente das de hoje em dia, todo seu instrumento de trabalho era coisa de museu. Quando cheguei à escola recebi muitos tapinhas, pra não dizer cascudos.  Eu ficava triste por não reagir diante dos valentões da escola que não se cansavam de me chamar de cabeça pelada. Outro dia meu irmão estava brigando com um menino e eu não tive coragem de entrar, me achava pacato demais pra essas coisas. Só sei que depois, meus colegas me acusaram de medroso e covarde, fiquei sentido, mas tudo passou, fazer o quê? Passava longe das brigas. Pra fechar a segunda série me lembro do Sr. Abílio. A escola não tinha muros e ficavam muitos moleques nas janelas perturbando as aulas, alguns eram meninos do turno oposto. O Sr. Abílio tinha um chicote que era o terror dos que gostavam de dar uma espiadinha pela janela. Com isso ele ganhou um apelido: Abílio Orelhudo. Era grande mesmo.

Na terceira série tive a professora Vivi. Ela conhecia meu avô. De vez em quando ia visitá-lo no povoado de Umburanas. Lá no sitio tinha os biscoitos deliciosos de minha avó, além do doce de leite e comida no fogão á lenha. E aproveitava aquele amplo espaço para caçadas, subir nos cajueiros e ouvir histórias de raposas loucas. Um fato que me deixava muito curioso: Meu avô deitava na rede e ficava matando moscas com uma paleta feita de chifre de boi. As moscas iam caindo pelo chão ficando espalhadas. O curioso acontecia quando uma lagartixa vinha lá de fora e começava a papar as moscas. Isso acontecia quase todos os dias, o réptil já havia se acostumado com meu avô, até que num belo dia eu quis me aproximar do animalzinho pra fazer amizade e acabou fugindo, de quebra ganhei uma reclamação. Aliás, era sempre “menino desce daí!” “menino não mexe aí!” assim iam os meus dias no sítio. E a lagartixa já não entrava mais na sala para sua refeição. Acho que me esperou ir embora pra entrar no refeitório da sala de estar. Ainda na escola tive pela primeira vez uma estagiária que nos ensinou uma música legal:

“Que bom ser criança ô lelê,
Que bom ser sapeca ô lalá,
Brincar de casinha ô lelê,
De bola e peteca ô lalá...

E eu fui passando na escola e o tempo também. Desse período fica as brigas com os colegas, Celso que me perdoe. Eu disse logo atrás que não gostava de brigas, mas uma vez e outra havia provocações que não davam pra resistir.  As pescarias. Teve um dia que sai escondido de minha mãe e passei um dia inteiro no rio. Foi uma grande aventura que requer outro relato. Ficam as corridas pra escola, as mentiras contadas, os amigos que fiz. Nunca mais os vi: Paulo, Cristiano, Glorinha, Luciano, os irmãos Sidnei e Leandro, Arildo e tantos outros. Minhas idas ao centro pra comprar revistinhas, meus brinquedos (bonecos de guerra e de super-heróis, etc.). A velha televisão preto e branco, no qual não perdia os desenhos do Balão Mágico e depois Xou da Xuxa! Era Hulk, Homem-Aranha, Comandos em Ação, Transformers, He-man, She-ra, e um monte deles. Em outros canais Sprectoman, Ultraman, etc. Eram os famosos anos 80, a década perdida para alguns, mas para mim a década mágica onde encontro os meus melhores dias já vividos.

Quando passei para a quarta série eu já tinha dez anos e me veio outra novidade, íamos nos mudar novamente, não seria de rua, muito menos de bairro, mas de cidade, seria Marcionílio Souza o lugar, no centro norte baiano. Nunca pensei que existia um lugar com esse nome tão esquisito. Meu pai falava de tomar banho no rio Paraguaçu e comer tucunaré todo fim de semana. Gostei da idéia. De Brumado ficou para trás os vizinhos, os amigos, a última surra por ter derrubado o muro (só um pedaço!). A primeira comunhão que não completei. Era bom andar abraçado com a tia Edleuza nossa catequizadora.  Nossa família e a mudança vieram de trem, inclusive a última, pois a Bahia extinguiria depois os trens com passageiros. A empresa achou melhor manter apenas os cargueiros.

Já instalado em Marcionílio Souza ou Tamburi como queira chamar (ainda hoje está gravado na velha estação de trem esse antigo nome), não foi difícil fazer novos amigos. Tudo pra mim era novidade. Jogava futebol, caçava passarinho como em outros tempos, colhia umbu no mato na época certa, apostava corridas e contava para os novos amigos como era Brumado. Às vezes eu exagerava um pouco, Pinóquio que me perdoe. Na nova escola, Eurídice Sant’Ana, eram bons os recreios. Nossa sala era uma extensão que ficava fora do prédio, num lugar chamado Polivalente. Ali brigávamos com os morcegos e maribondos. A professora Selma gostava de fazer crochê nos intervalos e cá pra nós em alguns momentos nas aulas também.

Assim fui vivendo o pôr-do-sol da minha infância. Período significativo da minha vida que é guardado em um lugar onde só eu saberei como encontrá-lo, lá num cantinho do coração. O que fica hoje é a nostalgia, um aperto no coração, uma saudade de um tempo que não volta mais. A vontade de rever velhos amigos que não vejo há anos. Agora os tempos são outros, eu cresci, estou grande, mas a criança ainda existe em minhas memórias. E quando o eu adulto encontra-se com ela os dois se abraçam e choram.
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CHS - AS FACES DO PÊLO - PARTE I

Por.:Jair Lima
Marcionílio Souza - Bahia

Jair Lima trabalhou por muitos anos no Centro Histórico de Salvador a partir de seu testemunho faz um conto onde a verdade peranbula pela ficção. As semelhanças são semelhantes, os nomes são trocados para preservar as pessoas. Então boa leitura!
 

O sol desce no horizonte e a noite cobre a cidade do Salvador, suas luzes alaranjadas tomam o lugar do astro rei. As portas das lojas começam a descer, os ambulantes arrumam as suas muambas, o fluxo de carros e ônibus aumenta repentinamente, as pessoas correm para todos os lados, os vendedores de café sobem e descem guiando seus carrinhos em miniaturas.
Um novo tipo de comércio se inicia no pelô, mingau, cuscuz de tapioca, caldo de sururu e lanches, aperitivos mil nos ombros dos ambulantes, do Romeu e Julieta ao queijo coalho, do churrasquinho de gato a pinturas em cerâmicas.
A Praça da Sé, ou “as praças”, pois são muitas, com suas ruas e vielas, vão se enchendo de um novo elenco e formando um novo cenário. Gente de todas as gentes do mundo e do Brasil vão se cruzando, curvam os olhares e os joelhos diante das muitas novidades que o universo cultural baiano lhes oferece. Na praça da fonte uma figura solitária se prepara para apresentar seu chou de estátua viva, um grupo de street dance se esforça para atrair a atenção e barganhar algumas moedas.
No 18º Batalhão de Policia Militar Turístico, policiais fardados enxameiam a frente do mesmo, com seus coletes refletores, os praças vivem indignados com este acessório. Alguém grita CHS em forma! A tropa se ordena as averiguações se inicia, a tropa é apresentada ao oficial que inicia uma série de recomendações e experiências que causa certo incomodo a tropa já saturada dos discursos repetitivos de toda vez que vão assumir o serviço.
Costuma se dizer que no CHS só tem policiais honestos que buscam quitar suas dívidas, na verdade lá encontramos todo tipo de história os que pagam um empréstimo da consignação bancária, os que estão construindo ou reformando suas casas, ou ainda algum tipo de comércio.
Eles saem do serviço ordinário e entram a cada quatro dias para um turno alternado num serviço que chamam de CHS.
Enquanto os policiais se dirigem á seus postos de serviço, os taxiceiros disputam uma corrida, chegam a se agredirem; os sacizeiros já perambulam de um lado para outro no intuito de conseguirem um trocado qualquer para comprarem um resquito de craque, nas ruas e sacadas estão os turistas, parecem engraçados quando pedem uma informação, com a língua presa geralmente querem saber como chegar a um bairro ou a um hotel qualquer da cidade, alguns deles parecem fascinados com o pelô, muitas vezes são vítimas fáceis para os sacis. Pobres sacis, miseráveis sombras de uma humanidade perdida, meninos e meninas, homens e mulheres, adultos e crianças de toda classe social e cor, entregues ao domínio do craque. Basta um “pau” dizia a prostituta “banguela” de meia idade que acabara de ganhar cinco reais para fazer um boquete num cara qualquer, às vezes um ambulante, noutra um pretenso juiz de direito, foi o caso de um cidadão branco, alto de meia idade, em um carro luxuoso, provavelmente um importado, o pretenso juiz se queixava de ter sido roubado por duas sacizeiras, quando abordado e questionado pelos policiais o mesmo apresentou documentação de juiz e justificou sua conduta com o fato de está se separando da mulher,o policial que viu as duas sacizeiras saírem do carro se questionava: “como pode uma coisa dessa? Elas são secas, feias, sujas e fedorentas”, foi encontrada uma delas abordada e revistada por uma policial feminina, que quase vomitava por causa do mau cheiro que ficou em suas mãos, teve que ir ao quartel para se lavar, referindo se ao pretenso juiz e sua desculpa, um dos policiais comentou: que problema que nada aquele “filho da puta” é só um saci descarado.
Os sacis mais presentes são os indigentes, esta classe de miseráveis que andam contorcidos pela fraqueza física e seqüelas mentais do vício, é a figura mais marcante do saci, no entanto, há os que são de classes mais privilegiadas e turistas de muitos países. No dia em que o policial Fernando levou um “bolo” de um rasta negro que se identificou como “América saci” e repetia por varias vezes “América saci”, o experiente policial suspeitando da sacizeira preta e mal tratada, que mais parecia um palito andando, no rápido contato ela passou uma pedra para o rasta negro, quando ouviu o grito do policial ela fugiu, ele revistou rapidamente o rasta que repetia nervosamente América saci... Quando o policial que todos chamam de “SMURF” apanhou a sacizeira ela confessou que passou uma pedra para o rasta e que o mesmo havia escondido no cabelo, o policial Fernando assumiu meio decepcionado que realmente não olhou o cabelo do suspeito. 

CHS - AS FACES DO PÊLO - PARTE II

Fernando trabalhava no “grupo B2” compõe a equipe comandada pelo Cabo Maia, os sacis os temem, pois são muito rigorosos. Os sacis andam com muito cuidado no serviço deles, não abusam dos gringos e repetem o tempo todo: hoje é Seu Maia essa equipe é viola, eles usam pedaços de pau e outros objetos que lhes sirvam como instrumentos de castigo aos miseráveis que por motivos inexplicáveis e circunstancias misteriosas investiram-se em um mundo cruel e implacável, que os consomem dia a dia.
Na Rua Chile está o famoso beco do amor, às vezes serve até de distração para os policiais que são obrigados pelas suas necessidades a passarem um maçante turno de oito horas noturnas, a fim de impedir que as indesejáveis escórias da sociedade se misturem com os supostos privilegiados.
O policial Ribeiro é crente, tem postura firme e até rústica em tratar os indigentes e digentes do submundo obscuro do Pelô. Ele tem bom tato para detectar alterações, desde uma pequena prostituta de quatorze anos que de longe corre atrás de outra vitima das contrafações universais que os levaram a uma vida de miséria, que com um pescoço de garrafa na mão tenta alcançar um garoto de apenas doze anos, interceptados por uma dupla de policiais enquanto trocam insultos e palavrões dos mais baixos níveis, são forçados a se calarem, no entanto ainda resmungam, soltam bodejos e trocam olhares frios um para o outro expressando um ódio desumano, são apenas crianças amadurecidas nos vícios e na marginalidade, o policial Ribeiro os adverte e ao garoto ele castiga com a tonfa que carrega na mão, porem ele não tocou na menina. Nesse mesmo instante um casal entra no famoso beco do amor, os policiais se dirigem ao beco com as tonfas na mão, na parte alta da calçada ficam olhando um garoto de treze anos a ponto de transar com uma sacizeira, que ao perceber a presença dos policiais se veste e se dirige para fora do beco enquanto balbucia algumas palavras sem sentido lógico, na verdade os sacizeiros costumam se expressar com ar de mongolismo, como retardados mentais, o tempo todo vagueia falando sozinhos como que fugindo de alguma coisa ou conversando aleatoriamente, alguns andam sem nenhuma expressão, os braços caídos, cabisbaixos ou mordiscando as unhas, aparentam completo esgotamento físico.
Uma prostituta branca, jovem, muito magra e seminua em um ponto de ônibus da Rua Chile parecia tentar subir na parede de vidro, expressando profunda angústia, esfregando-se e puxando a pouca roupa que vestia, permaneceu naquele lugar por horas como que tentando fugir de algo.
Cinco horas da manhâ o carro pipa da prefeitura passa lavando as sujeiras das ruas, os indigentes que dormem pelas calçadas, envoltos em papelões e trapos velhos são lavados como parte que são da sujeira, que infectam as ruas que se prepara para mais uma jornada sob a luz do sol, os miseráveis saem contorcendo e resmungado maledicências como que não suportando o peso de suas próprias misérias, desaparecem como a própria sujeira de mais uma noite no pelô.
No passado o pelô os castigava com chicote, hoje os castiga com o craque, continua sofrendo os negrinhos das ruas do pelô, sabe lá como se sentiam no tempo do mourão, seria possível comparar com o que sentem hoje? Se é que sentem alguma coisa. Os escravos de homens de outrora, são escravos da pedra de então.
Ah! Se o poeta os visse arrodeados aos seus pés, não mais presos a estacas, mas agarrados à pedra, não tão castigados por fora, mas corroídos por dentro. Não são menos, nem tem mais esperança hoje do que tinham naqueles dias.
Se não estivera esculpido em obra de homens exclamaria: “Oh, Senhor Deus dos miseráveis como pode tanta desgraça?”, no entanto, quem ouviria este grito, afinal ninguém se lembra de que são gente ou que já foram. Os que ouviram o poeta o colocaram numa praça com ar de nobreza e pescoço esguio, como que a lhe dizer fique ai idiota falador, veja para sempre a miséria que te incomoda e não ousa abrir a boca, este é o seu castigo eterno.
Cada dia no Pelô é apenas mais um dia, mas cada noite é uma história, cada rua uma face, o pelô é multifacial seus personagens diversos.
A violência, a prostituição adulto-infanto-juvenil, juntamente com o consumo e tráfico de drogas, constituem apenas um grande borrão nas infindas faces do pelô. Há também o fascínio dos Largos e Praças que não são poucas: Praça do Reggae, da Tereza, de São Pedro. Esse último encantador, nas quartas quando os idosos se entregam a dança de salão, idosos que poderiam estar em suas casas sentadas em uma calçada qualquer, sujeitos a depressão, não obstante a esta possibilidade se entregam aos devaneios, entre recordações do passado e a magia dos passos sincronizados.


CHS - AS FACES DO PELÔ - PARTE III


O Pelô que escraviza também liberta, que tira a alegria de viver também faz brotar sorrisos e regozijos nos lábios cansados, de quem dança e encanta pela beleza de estarem vivendo além de suas limitações.
Os garçons tentam atrair os clientes que sobem e descem o tempo todo, dão preferência aos gringos que vão deslizando para escapar dos sacis que lhes importunam com fitas do Senhor do Bomfim e bijuterias. Geralmente os gringos andam em grupos, uma atitude de defesa.
No Pelô muitas pessoas com muitas histórias para contar, um ‘taxiceiro horrorizado descreve o lado sombrio do Pelô, enfatiza a história de uma sacizeira, que saiu de uma viela suja e fétida, chorando em desespero e medo chamando pela polícia, pois acabara de transar com um cara que ao gozar nela ejaculou sangue ao invés de esperma.
O garçom da Gregório de Matos prefere gabar-se de suas aventuras extraconjugais no Pelô, um rasta negro, baixo e musculoso, com as extremidades da cabeça raspada e um molho de cabelos frizados com tiras brancas, que lhe confere um visual singular, este mesmo acabara de tomar uma broca de um policial, ouviu-se de longe o estalar do tapaço no ouvido, o negro ficou sentado na calçada o policial desceu para a Rua das Laranjeiras enquanto exclamava para o rasta: eu te conheço, saia daqui vagabunda! Ao mesmo tempo em que um saci comenta a respeito do rasta, ali é bicho, ele leva os gringos para serem roubados pelos amigos dele. O rasta sobe a rua reclamando do policial que o agredira, afirmando que não deveria ser julgado pelo que ele foi um dia e que o policial fez isso por inveja em vê-lo com uma gringa diferente a cada dia e que agora essa era a única coisa que ele fazia.
O vigilante Marcos se pergunta como os gringos se arriscam na praça do reggae, um dia disse ele, eu tentei expulsar dois “Bichos” que estavam com um gringo e o abestalhado ficou contra mim, dizendo: eles estão comigo, eu paguei para eles, ao vê-los se dirigindo para o banheiro o vigilante balançou a cabeça, pesaroso e comentou, olha lá, já se arrombou toma filho da puta para largar de ser abestalhado e não deu outra, a luz do sanitário apagou e quando acendeu o gringo estava no chão todo sujo de mijo, com a cara inchada e nem um centavo no bolso.
O policial Salvador da Silva, que já estava esperando agregação para aposentadoria gabava-se de suas aventuras amorosas no Pelô e sempre repetia a mesma frase: “É, se eu foder e não chupar eu não fudi, é se eu não chupar eu não fudi”. Ele incomodava muito ao colega Valnei, que rebatia com ar de nojo, eu hein, botar a boca numa vagina, como é que pode? Que logo foi repreendido por outro suposto crente que afirmou, “um casal pertence ao outro”, até citou Coríntios sete.
Faltam cinco minutos para as 23h:00, os policiais vão aos poucos se aproximando do quartel, pois este primeiro turno termina ás 23h:00, um policial experiente e um novato caminham enquanto o experiente aponta para uma Igreja e diz: ali é a Igreja dos negros e ali fica a casa de Jorge Amado, enquanto passam por uma rua ele aponta um beco e orienta aqui você nunca entra sozinho, lá atrás é uma favela cheia de traficantes.
Os policiais entram no quartel descarregam seus apetrechos de trabalho e tiram as fardas, um deles a paisana com uma mochila nas costas caminha pela Rua Chile apressadamente, olha para os sacis, as prostitutas, os turistas, os taxiceiros, as luzes, os policiais fardados. Passa pela Praça Castro Alves, olha a estatua inerte do poeta e a movimentação dos sacis, apressa-se até um ponto de ônibus que àquela hora já fica bem escasso e espera ansiosamente pela sua condução, ele entra no ônibus e senta, repara que tem poucos passageiros, abraça a mochila no peito e se esforça para não cochilar após um expediente no quartel e seis horas em pé no pelourinho, desce no ponto, olha para os lados e corre em direção ao quartel que fica a uns quinhentos metros e ainda tem que subir uma ladeira, ele sabe que não seria nada seguro ser abordado por vagabundos com uma farda na mochila, sozinho e desarmado àquela hora da noite naquele lugar, enquanto corre pensa no pelô, na sacizeira que lambia o chão onde um policial esfregou o pé numa pequena quantidade de drogas que havia tomado de um saci, a sacizeira negra e magricela lambia a mancha branca do pó que se contrastava com o asfalto preto e sujo. Enquanto as cenas do pelô passavam pela sua mente ele corria, sentindo-se fraco e abatido já era mais de meia noite quando entrou no quartel onde haveria de pernoitar, um novo dia já havia começado e o dia desse personagem do pelô ainda não havia terminado.   



DESCRIÇÃO-AQUI.