FICHAMENTO ANALITICO
Por.: Antonio Marcos de Almeida Ribeiro
Graduando de História pela UNEB - Campus XIII
O cenário medieval consegue atrair muitos para o seu universo servindo de inspiração para filmes e séries de sucesso. O grande trunfo dessas produções é a habilidade de trazer para o público aspectos do cotidiano, as diferenças, os costumes e os valores predominantes de uma época considerada como Idade das “Trevas” ou “Escura”. Isso faz com que o interesse pela Idade Média esteja sempre em alta. O ocidente aprendeu a cultuar o medievalismo não pelo cinema e TV, mas pelas pesquisas que trouxeram à tona todo universo de uma época, que veio a luz graças a pesquisadores franceses e entre eles encontra-se Jacques Le Goff.
Le Goff se interessou pela temática da Idade Média após ler Ivanhoé, aliás, foi esse livro que o colocou nos círculos de história. Com uma carreira meteórica foi reconhecido ainda em vida com a mais alta condecoração para pesquisadores na França. Seus trabalhos no campo da historiografia se destacam na área medievalista. Nessa obra História e Memória (2005) ele se propõe dar perspectivas as principais questões da historiografia. Revisa e amplia o conceito de história esboçada inicialmente pelo colega Marc Bloch. O seu esforço parte da premissa de dar cientificidade a “história vivida das sociedades humanas” no tempo. De Heródoto ao historiador contemporâneo evoca questões antigas e novas dentro dos debates da historiografia moderna.
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Jacques Le Goff |
O seu empreendimento no capítulo dedicado á História é colocar em pauta os problemas relacionados a historiografia que resumidamente são: 1) as relações entre história vivida, natural e objetiva nos estudo das sociedades humanas. 2) As relações entre história, tempo e duração. 3) Os diálogos entre passado/presente e presente/passado. 4) A história e sua relação com o futuro. 5) A história a interdisciplinaridade e as teorias de apreensão da realidade. 6) A escrita da história, dos homens? Da sociedade?
De inicio da mesma forma que Marc Bloch defende a História como uma ciência com a diferenciação de que não é como as ciências exatas e da natureza. De caráter único, a história, “ciência original”, vem de uma forma onde relato e explicação se entrecruzam. Como Lucien Febvre é favorável a uma história problema como bem indicou os Annales, reconhecendo os diferentes ritmos onde esse papel importante cabe a sensibilidade erudita do historiador. A obra é uma proposta para dar respaldo a cientificidade da pesquisa historiográfica onde se coloca aos fatos a explicação em vez da narração pura e simples, portanto, a história é feita de erudição conclui Le Goff (2005).
Paradoxos e ambiguidades da história
Entre os sentidos do termo história temos “investigação”, “procura” e o de “narração” essa última sofre de variações e sentidos por vezes confusas, por vezes incertas que podem afastar de sua cientificidade. Como diz: “A própria ambiguidade do vocabulário revela que a fronteira entre as duas disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é passível de sê-lo (em última hipótese)”. (Le Goff, 2005, p. 2).
Entre os paradoxos e ambiguidades da história vemos em primeiro lugar o seu caráter humano, pois se admite que está ligada a humanidade. Não é à toa que está ligada ao conhecimento das chamadas ciências humanas, o que leva muitos historiadores a liga-la a história social. Outra forma de concebê-la o que se tornou clássica é admiti-la que “toda história é história contemporânea” (2005, p. 24). Numa interelação onde a partir do presente se conecta com o passado. A ambiguidade vem com o perigo de cair na questão da inutilidade de se construir o passado pelo passado simplesmente. Como diz “o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história” (2005, p. 25). Portanto, a reflexão é essencial na construção desse passado e isso parte do presente.
A busca por resposta a uma problemática deve ser a cruzada de cada historiador, essa dinâmica é o que Le Goff (2005) chama de “função social do passado ou da história” (2005, p. 26). Os questionamentos partem do presente, as respostas estão no passado. As mesmas problemáticas podem ser discutidas e reinterpretadas no futuro. Essa é a dinâmica “como sequencia de novas leituras do passado, plenas de perdas e ressurreições, falhas de memória e revisões” (2005, p. 28). Tendo em vista isso Le Goff (2005) afirma que a História é uma arma se referindo a manipulação do passado e suas consequências.
Saber e poder: objetividade e manipulação do passado
Ainda sobre a manipulação do passado ela toca em duas histórias: a memória coletiva e a história oficial escrita pelos historiadores. A primeira é indicada como “anacrônica, mítica e deformada” (2005, p. 29), o que estaria na boca dos memorialistas justificando que pode ser feita por amadores e de forma até vulgar. Enquanto que a segunda o fato é construído, forjado de uma problemática, eis o alerta sobre a manipulação do passado porque “a história justifica o que se quiser” (2005, p. 32).
A história é uma forma de poder e não existe imparcialidade por parte do pesquisador, defendia o autor. O outro perigo alertado é sobre não reduzir a pesquisa realizada em mera narração ou conto. Como representante dos Annales é um ardoroso defensor da história-problema. Mas chama atenção para o fato de que “a obra do historiador é uma forma de atividade simultaneamente poética, científica e filosófica” (2005, p. 37). Em suma, o discurso deve ser convincente sem perder a cientificidade.
Uma das críticas a disciplina como ciência parte da ideia que de não existe leis em história, como é abundante nas ciências naturais. Le Goff rebate afirmando que a história é singular, que possui seu objeto, sua teoria, crítica e seus métodos de explicação que é o dedutivo. Não é concebida para produzir e consumir leis, mas “reside na valorização tanto das diferenças como das semelhanças, enquanto as ciências da natureza procuram eliminar as diferenças” (2005, p. 45). Le Goff defende que não existe uma história global ou total. Pode-se fazer sim um trabalho globalizante a partir de temas do tipo História Mundial do Trabalho, da Pobreza, etc.
Outro ponto tocado é sobre as datações. Orienta que o historiador não deve ficar limitado no espaço e no tempo, apesar de ter sua periodização, o que seria uma tarefa de práxis. Outra parte importante é a captação dos fenômenos, da mentalidade de uma época. Esse era o espírito dos Annales, uma pesquisa histórica em sintonia com seu tempo o que sublinhou grandes progressos na produção historiográfica. É isso que justifica a contemporaneidade da produção porque responde a interesses atuais de pesquisa. Por isso a ciência histórica é a única capaz de manipular o tempo, pois “a História é a ciência do tempo” (2005, p. 52).
É de se imaginar que a cultura ocidental considera o saber histórico como que concebido pelos gregos com motivações ligadas a ideia de civilização x bárbaro. Sendo a história uma arma política, caiu bem para os romanos exaltarem sua civilização como cultura ideal para a humanidade o que se perpetua até os dias de hoje no ocidente. Os EUA são consideramos a nova Roma exatamente por levar ao mundo a ideia de expansão territorial e ideológica. Le Goff diz que
Quanto às outras civilizações, se elas parecem dar menos importância ao espírito histórico, isso se deve ao fato de, por um lado, reservarmos o nome de história às concepções ocidentais e não reconhecermos como tais outras maneiras de pensar a história e, por outro lado, porque as condições sociais e políticas que favoreceram o desenvolvimento da história no Ocidente nem sempre se produziram em outros lados. (2005, p. 65).
O que se pressupõe é que a História inicialmente foi uma instituição ocidental “ostentatória e animada dos dominadores” (2005, p. 70). E que por muito tempo não foi objeto de ensino, somente depois da expansão do ensino estendido as massas, foi após a Revolução Francesa que as escolas passaram a difundir a cultura histórica.
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Leopold Von Ranke |
As filosofias da história
Sobre as filosofias da escrita da história temos uma linha panorâmica que mostra como os antigos historiavam. O primeiro exemplo, Heródoto enxergava todas as coisas com a influência de fatores econômicos, naturais e sobrenaturais. Sua escrita era memorialista, narrativa e apoiada em relatos ouvidos. Já Tucídides colocava os fatos em ordem com o fator guerras como marco de mudanças. Sua escrita estava ligada a retórica. Considerava a ação humana como resultado das condições de vida individuais Sua história era marcada por realismo, criticidade.
O cristianismo dará outro sentido a forma de historiar submetendo-a a teologia durante toda Idade Média. O cristianismo que vai reformular a concepção de tempo criando uma mentalidade histórica no ocidente. Mas, sobretudo nos séculos XVIII e XIX a prática histórica iria laicizar-se pelas ideias de progresso e sentido secular através de fatores essenciais de concepções cientificas e de práxis identificada com a realidade. Pecava somente no historicismo, isto é, a busca pela verdade como pregada por Heródoto. No século XIX a história torna-se disciplina de especialistas e profissionaliza-se através de um estatuto próprio: a história procura causas, não é simples narração e possuí objeto, o homem, constituído através das sociedades e na sociedade.
Em linhas gerais, se os pais da história utilizavam os testemunhos orais cada um ultrapassava e acrescentava um rigor a mais nas suas análises. Fundamentados numa cronologia que são fundamentais numa pesquisa. Os monges medievais deram um toque cristão na história, o renascimento prestara seu serviço na laicização da história com as ciências auxiliares colocando a erudição como sua aliada. “Assim, firmemente apoiada nas ciências auxiliares (arqueologia, numismática, sigilografia, filologia, epigrafia, papirologia, diplomática, onomástica, genealogia, heráldica), a história instalou-se no trono da erudição”. (2005, p. 126).
O único problema enfrentado no século XIX foi a busca de leis em história e a busca por um modelo único de como se fazer história. Mais uma vez pecaram nessas buscas o que fez com que em vez de observarem o individuo colocaram a política como o centro das observações o que inspirou a ciência histórica alemã de Ranke. Sendo um metodólogo influenciou toda uma geração com a ideia, a mesma de Heródoto, de que se poderia dizer o que de fato aconteceu. Lamentável “Ranke, empobreceu o pensamento histórico, atribuindo excessiva importância à história política e diplomática” (2005, p. 89 e 90). A partir daí todo historicismo estava centrado sob a influencia de Ranke. De uma forma a história torna-se uma religião ao evidenciar as marchas das sociedades e sua transfiguração. Onde os ciclos se sucedem um ao outro pelas mudanças ocorridas ao longo do tempo.
Em relação a contribuição teórica de Marx e Engels à historiografia, está no fato de que “o modo de produção da vida material condiciona o processo social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas ao contrário, é seu ser social que determina a sua consciência” (2005, p. 95). Resumindo a história do homem é a história da luta de classes nascendo assim o materialismo histórico. Com esse pensamento nascerá no século XX os chamados historiadores de esquerda ou marxista. E Gramsci ampliará esse conceito ainda mais aliando ciência com práxis. Essa linha encontrará problemas por defender o historicismo em suas interpretações da sociedade.
Dentro das inovações historiográficas recentes temos Michel Foucault que escreveu a história da loucura. O seu foco estava na segregação dos desviados, do individuo marginal. Suas analises estavam alicerçadas em quatro pontos: o questionamento do documento, a noção de descontinuidade, a possibilidade de história global e novos métodos, no qual incorpora uma filosofia original. Le Goff a esse ponto defende a cientificidade da história ao afirmar que “a melhor prova de que a história é e deve ser uma ciência é o fato de precisar de técnicas, de métodos e de ser ensinada” (2005, p. 105). Dentro dessa afirmativa está alicerçada a ideia de que “sem documento não há história”, pois é a partir do documento pode-se construir o fato. O problema são as considerações sobre o documento quais irão aceitar ou rejeitar. Outro fator é que a história está ligada ao aparecimento da escrita, portanto a supremacia do documento escrito ganha peso na historiografia tradicional que sentimos seu ranço até a época atual.
Para Le Goff (2005, p. 109):
Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interroga-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. [...] A história tornou-se científica ao fazer a crítica dos documentos a que se chama “fontes”.
Em outras palavras o conhecimento histórico é construído com base nas fontes por isso não há espaço para historiadores “amadores” que não sabem como tratar o documento como é ensinado na academia. O perigo real são as manipulações do texto/documento e o documento falso por isso tudo deve ser analisado passar por uma avaliação sobre sua credibilidade. O que pode vim fazer parte da análise historiográfica das intenções para com o documento, retirar dele a sua confissão. Outra opinião é a concordância de duas fontes independentes. O entrecruzamento, o diálogo entre as fontes dará respaldo a uma problemática especifica. Por isso “todo o passado humano e cujo método consiste em reconstruir o passado a partir de documentos escritos ou não escritos, analisados e interpretados com espírito crítico” (2005, p. 122). A ascensão dos Analles foi uma revolução documental.
A história hoje
Le Goff nessa parte faz um balanço dos avanços da historiografia no século XX com destaque para a história social, história oral. O que não seria viável com os desdobramentos da Escola dos Annales que concebeu a nova história que “apontavam aos historiadores: a história econômica e social, a história das mentalidades, as investigações interdisciplinares” (2005, p. 132). Nessa perspectiva o fato histórico era construído a partir da colaboração de outras ciências sociais. A reviravolta foi a substituição da história-narração pela história-problema com atenção pela história do presente. A obra que mais chegou perto dessas inovações foi o Mediterrâneo de Braudel onde abordava a longa duração e a questão dos tempos (geográfico, social e individual) depois dessa obra às pesquisas seguiriam outro rumo.
Após a Segunda Grande Guerra houve problemáticas de outra ordem na historiografia, Le Goff aponta algumas: a história deve estar em sintonia com o mundo, quer dizer, que represente as identidades individuais e coletivas. Tem haver com os objetivos e direção da escrita se será objetiva para o saber simplesmente ou se será engajada embebida de militância. O grande problema da proposta de uma história global - ideia já defendida em outros tempos e debates - é que ela pode se tornar sintética demais ao ponto de deixar brechas para muitos questionamentos.
Quando a história se aliou a antropologia passou a privilegiar alguns domínios e problemas que enriqueceram as pesquisas abrindo um leque de possibilidades nunca antes exploradas. O que chegou ao ponto de alguns defenderem uma nova disciplina histórica: a antropologia histórica. As suas linhas de pesquisas estavam voltadas para: história da alimentação, a história da sexualidade e da família, a história da infância e a história da morte. Dentro desse quadro entra também o diálogo com as ciências sociais que privilegiou esse encontro. E indo mais além existe alguns projetos ousados na ideia de exploração nas ciências da natureza, ou seja, biólogos em pesquisas historiográficas.
Essa primeira parte da obra de Le Goff abrangendo questões de história da história é crucial nos estudos sobre teoria e historiografia nos dando um panorama dos debates em torno da temática. O que não é novidade sobre esses debates é que a história em seus desdobramentos, alargamento das fronteiras epistemológicas sempre encontrou limitações e impasses. Le Goff sublinha: “julgo ser indispensável o recurso à história, no conjunto das práticas do conhecimento humano e da consciência das sociedades” (2005, p. 145). Em outras palavras o conhecimento histórico é essencial. E não é a toa que a história está alta em nossos dias com periódicos, revistas, filmes e sites. Está com toda força dentro da proposta do capitalismo de uma sociedade de consumo. Como disse Le Goff existe uma “necessidade que as sociedades têm de alimentar sua procura por identidade, de se alimentar num imaginário real” (2005, p. 145).
BIBLIOGRAFIA:
GOFF, Jaques Le. História e Memória. São Paulo: editora Unicamp, 2005. (capítulo História).
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