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Por.: Antonio Marcos Ribeiro
Graduação em História
UNEB/Campus XIII


A premissa básica do filme Narradores de Javé (2003) é retratar os processos da oralidade e a experiência sertaneja ante uma ameaça iminente. A ameaça é a construção de uma usina hidrelétrica que acabará por destruir o povoado. Essa notícia quebra a rotina do Vale de Javé e faz com que os moradores se mobilizem na busca de uma solução para que o povoado não seja inundado. A resolução encontrada é a confecção de um documento descrevendo os grandes acontecimentos da fundação do lugar. História essa heroica importância simbólica dentro das tradições orais de seus moradores. Esse documento provaria para as autoridades que Javé é um patrimônio a ser preservado.



O impasse para construção desse “dossiê” estava no fato de que seus moradores são analfabetos, portanto incapazes para a tarefa. O primeiro trabalho seria encontrar alguém que pudesse escrever a narrativa de forma científica, objetiva e verídica. O único apto para a empreitada era Antônio Biá, porém era mal visto pelos moradores. Em tempos passados ele na ânsia de salvar seu emprego nos correios inventou várias histórias sobre os habitantes trazendo sobre si a fúria do povo. A partir desse novo problema da iminente destruição da Javé, a escrita passou a ser objeto de suma importância para as pessoas ali residentes e Antônio Biá o único capacitado para colher entre as memórias do povo o registro “fiel” da fundação do povoado. É sobre essa incumbência que Biá é convocado e aceito de volta a comunidade para ser a salvação e escritor dos feitos de Javé.



Empossado de seu cargo de escrivão Biá sai em busca das histórias e depara-se com problemas bem maiores do que imaginava. Ele se depara com várias versões de uma mesma história cada uma com suas peculiaridades. Observa-se nas falas dos personagens/narradores demarcações particulares de uma visão de mundo próprio ou de um grupo específico. O olhar de quem conta traz em si as experiências vivenciadas por determinado grupo, a exemplo, a versão da mulher, do vaqueiro, do negro, etc.



Antonio Biá vê-se num emaranhado de tantas informações que fica saturado pelos fatos aparentemente divergentes. Além disso, sofre pressão das pessoas que desejam que sua versão escrita sendo assim um oficial colaborador para a história oficial do Vale de Javé. Isso leva a desentendimentos, discussões e decepção. Biá sente-se frustrado por não dá conta de uma narrativa tão cheio de fabulas que torna-se difícil separar a ficção da realidade.



Alguns impasses são colocados no enredo do filme sobre quem realmente fundou Javé se Indalécio ou Maria Dina. Seria Indalécio ou Indalêu o fundador de Javé? De onde veio Indalécio? Questões que colocaram Antônio Biá numa situação para desvendar a fonte mais confiável para a narrativa. Essas arbitrariedades e interferências acabam por inferir na produção do livro ou invés de ajuda-lo. Por fim Biá acaba não escrevendo nada. Não registra no livro os depoimentos que serviria de base para a história oficial do Vale de Javé e é expulso em meio a uma grande confusão.

As dimensões do filme nos levam para passado, presente e futuro num ir e vir a todo o momento. Outro destaque é a oralidade elemento esse que integra a memória dos fatos. A oralidade está tão presente que o filme todo é uma narrativa. Zaqueu personagem de Nelson Xavier inicia a história num bar a beira do São Francisco para um viajante que perdeu a embarcação. Ele é um remanescente de Javé, testemunha viva que narra a seu modo os acontecimentos passados. A narração de Zaqueu é o filme e não as múltiplas narrações do Vale de Javé e Antônio Biá.

Alguns aspectos podem ser observados no filme no que diz respeito aos hábitos, costumes, crença e cultura dessa comunidade. Esses aspectos da vivência dos moradores de Javé fornecem informações úteis sobre o modo de vida dessas pessoas que ajudam a entender melhor o outro. Esse olhar antropológico, historiográfico e sociológico fazem um elo que nos ajuda a perceber outras facetas da vida humana e a si mesmo. Mesmo que o filme seja uma ficção não deixa de ter uma verossimilhança com realidades encontradas no interior do país. O filme nos ajuda a perceber os elementos necessários para compreensão do homem enquanto ser cultural e social.

A comunidade de Javé é praticamente analfabeta com algumas exceções, a escrita não faz parte do dia-a-dia dos moradores, não possui um caráter prático até o momento em que se precisou dela. A oralidade e a memória é o ponto forte de seus habitantes por isso as histórias estão carregadas com riqueza de detalhes, emoção e sentimentos de pertencimento a um lugar. A identidade é marcada por essa narrativa de valor narrativo no qual seus habitantes se identificam e se veem na história. Todos que acompanharam os depoimentos de alguma forma eram representados na história seja como negro, mulher, oprimido, viril, etc. Desde tempos imemoriais a oralidade foi um fator chave na constituição das sociedades mais antigas. As lendas, crenças, costumes e cultura eram repassados via oralidade, de pai para filho resguardando na memória toda aprendizagem repassada com a incumbência de retransmitir quando necessário.

O quadro sociocultural estava retratado em casa um dos depoentes e personagens da fundação de Javé. O povoado é por demais isolado e as coisas são requisitadas e trazidas por alguém responsável (Zaqueu) em fazer esse intercâmbio de compra e venda. Esse isolamento coloca o lugar como uma organização própria e costumes diferenciados. A tecnologia ainda não chegou por lá e quando os engenheiros chegam entra em choque com o costume local: teísmo e ateísmo (o engenheiro declara seu ateísmo), saber ler e não saber ler, a ciência contra as tradições. A barragem era uma espécie de grande boca que iria engolir tudo que fosse “atrasado” para dar lugar ao novo.

Outro aspecto notado é a religiosidade presente nas narrativas e em todo trama. As reuniões são realizadas na Igreja onde as pessoas são chamadas pelas batidas do sino. Esse espaço delimitado é centralizado no povoado. Algumas narrações são messiânicas, proféticas onde Indalécio como espécie de Moisés conduz o povo para uma Canaã. Na narração de Vicentino a indumentária de Indalécio faz lembrar São Jorge, o santo guerreiro. O ancião negro conduz a narrativa em êxtase profética dentro da religiosidade afro. Todos esses pontos mostram a presença marcante da espiritualidade entre os moradores de Javé em contradição ao ateísmo dos engenheiros que pragueja blasfêmias e maldições.

Outros pontos poderiam ser discutidos o que aumentaria o espaço de discussão. Como a narração dos gêmeos que coloca a história de outro ângulo. A narração de Daniel que é mais existencial da sua própria vida tocando o presente e passado recente. A questão das terras no Brasil dos latifúndios negados e das migrações em busca de um lugar para pousar. Tudo isso mostra a riqueza de debates que giram em torno dos Narradores de Javé.

Em linhas gerais, o filme retrata vários aspectos interessantes para uma discussão sobre conceitos antropológicos: mito fundador, cultura, sujeitos históricos e tradições. Ao final das narrações, a tradição não conseguiu manter o povoado que foi inundado pela modernidade da hidrelétrica. O sertão virou mar, mas isso não significou a destruição definitiva da memória sob o mundo letrado a salvação do sino era mote para outras narrativas do novo Javé que seria fundado as margens das caudalosas águas.


FILMOGRAFIA:


NARRADORES DE JAVÉ. Direção Eliane Caffé. DVD/Cor. Distribuição: Lumiere/Videofilmes, Duração 102 min. Brasil, 2003.



VEJA O FILME COMPLETO


 

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