Na diáspora africana as nações que aqui aportaram não trouxeram pertences, nem bagagem alguma, mas dentro de si saberes e fazeres ancestrais que a árvore do esquecimento foi incapaz de apagar da memória ‘seu passado, suas origens e sua identidade cultural’. O documentário Atlântico Negro: Na rota dos orixás (1997) apresenta as relações entre as culturas da Bahia, do Maranhão e do Benin. Como sugere o título o Atlântico serviu de conexão entre os dois continentes com relações históricas e culturais muito próximas onde o fluxo e refluxo influenciavam a África no Brasil e o Brasil na África.
Na abertura do documentário é mostrado um filete de água, caracterizando um rio, de onde salta o título. Costa e Silva (1999) escreveu um livro com uma temática sugestiva: Um rio chamado Atlântico evocando essa dimensão de estreitamento entre as culturas. Entre as imagens de abertura aparece Yemanjá considerada rainha do mar, segundo Pierre Verger na região entre Ifé e Idaban existe um rio chamado Yemanja. O rio é uma metáfora para expressar a ideia de reciprocidade, de encurtamento da distância cultural entre os dois lados. E segundo Parés (1998-1999):
A noção de um Atlântico negro, como uma área cultural única e interligada, coloca a cultura dos afro-descendentes nas Américas e na Europa em pé de igualdade com a cultura africana de origem, e lhes confere um status de autonomia que se opõe àquela visão nostálgica de uma África idealizada como terra-mãe, como origem perdida. A noção de um Atlântico negro, é antes de tudo, uma reivindicação da diáspora, uma nova proposta de relacionamento com a história.
As cenas são apresentadas no entrecruzamento do fluxo e refluxo das heranças herdadas. Na religião a Casa Fanti Ashanti, no Maranhão, dirigido por Pai Euclides aparece como uma ilha viva da cultura do Daomé no Brasil. O inicio do documentário é uma conexão estabelecida entre dois líderes religiosos e os vínculos ancestrais nos dois países. Nota-se insígnias como o cajado cerimonial como símbolo de poder e hierarquia na nagocracia. São esses elementos semelhantes entre as culturas, língua (fon) canções, culto as divindades (Pai Euclides é de Oxaguian com Oxum), a ritualística, que se configura como forma de preservar e reviver as tradições. Evocando através dos movimentos corporais, da música na língua original, nas pinturas na Casa sua ancestralidade. Sabendo que nenhuma cultura é estática a reelaboração foi crucial ao que Ferreti aponta algumas dessemelhanças, mas que não compromete os estreitos laços entre as duas tradições.
Segundo Matory esses grupos foram estreitados por um diálogo transatlântico e supraterritoriais nunca de forma isolada dando a elas identidades transoceânicas. A sobrevivência cultural apontado por Matohy é visto no refluxo nas Festas do Senhor do Bomfim, festa de rua (espécie de procissão/carnaval), inclusive ostentando a bandeira brasileira. No fluxo o culto dos orixás e voduns, a musicalidade baiana são provas concretas do patrimônio imaterial entre o intercâmbio nas tradições que permanecem visíveis tanto no Brasil como no Benim e Daomé. O exemplo mais interessante sobre identidades transoceânicas está nos agudá que são intermediários entra os dois continentes.
Essas identidades abordadas são nagô-jeje o que segundo Matohy o termo jeje aparece no Brasil em 1739, e gera um grande debate sobre sua etimologia. A conclusão que se chega é que esse termo foi criado na diáspora no fluxo e refluxo de escravos e retornados afirmando a transformação e ressignificação aos fenômenos transnacionais:
O grupo étnico jeje é um desses casos que estende a duração do fenômeno cultural e politicamente transformador, que é atualmente chamado de “transnacionalismo”. Não menos importante, esse caso demonstra que tais unidades sociopolíticas não prefiguram a morte do Estado-nação, ao contrário, acompanharam a sua subida e continuam constituindo-o dialeticamente. MATORY. pp 70,71. 1999.
Em linhas gerais, o documentário aponta para as repercussões da diáspora num Atlântico negro de identidade transoceânica através da rede intensa e contínua de comunicação revelando que entre a África e o Brasil os caminhos se encontram.
REFERENCIAS:
ATLÂNTICO NEGRO: NA ROTA DOS ORIXÁS. Direção: Renato Barbieri. 75 min. DVD, cor. 1998.
COSTA E SILVA, Alberto da. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003.
FERRETI, Mundicarmo. Pureza Nagô e nações africanas no tambor de mina no Maranhão. Revista Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, año 3, n. 3, p. 75-94, oct. 2001.
Acessado em 12/3/2010.
MATORY, Lorand. Jeje: repensando nações e transnacionalismo. Mana [on line]. 1999, Vol. 5, pp. 57-80. Dísponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v5n1a03.pdf
Acessado em 06/03/2010.
VERGER, Pierre. Dieux D'Afrique. Paris. Paul Hartmann,1995.
ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO NA ÍNTEGRA
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